Fundamentos hidrológicos da recarga artificial de aquíferos de pequenas bacias hidrográficas.
Osvaldo Ferreira Valente*
As vazões dos cursos d’água que drenam as bacias hidrográficas mineiras , nos períodos de estiagens e com mínimos ocorrendo normalmente entre final de agosto e princípios de setembro, estão 50% menor do que as de 30 ou 40 anos atrás. E a queda é explicada hidrologicamente pela redução da capacidade de as bacias alimentarem os aquíferos subterrâneos em períodos chuvosos. Se os aquíferos recebiam, por exemplo, de 16 a 18 % dos volumes de chuvas colhidos pelas suas bacias ao longo do ano, há 40 anos, hoje esta percentagem não passa de 8 a 10%, nas bacias que demonstram estado já avançado de degradação.
Vamos, nas propostas a seguir, adotar como meta a duplicação de vazões de estiagens de pequenas bacias hidrográficas, formadoras das grandes, com base: 1) na nítida diminuição da capacidade de retenção de água pela bacia, quer pelo aumento de construções, quer pela degradação das áreas rurais; 2) na impossibilidade de fazer com que o ecossistema hidrológico da bacia volte a ter um comportamento natural semelhante ao de muitos anos atrás; 3) na viabilidade de adoção de tecnologias de recargas artificiais de aquíferos.
A hidrologia de uma bacia
Vamos admitir bacias atingidas anualmente por chuvas totais entre 1.200 a 1.300 milímetros ( o que é comum nas cabeceiras de nossas grandes bacias da região sudeste). Valores resultantes do somatório de dezenas de eventos que vão de chuvas fortes, de curtas durações, chamadas chuvas intensas na literatura especializada, e que são as mais perigosas, produzindo grandes volumes de enxurradas. Contribuem também para o somatório, aquelas chuvas finas e que podem durar o dia inteiro ou até mais de um dia.
O exame das chuvas intensas mais comuns leva-nos a escolher, para as análises do presente trabalho, a de 50 mm/h, com duração de 30 minutos. Ela pode ocorrer muitas vezes por ano e se nos prevenirmos para a sua boa recepção, estaremos preparados para conviver bem com a maioria dos eventos que nos atingem.
O esquema da Figura 1 vai nos ajudar a entender o que pode acontecer quando uma chuva dessas atinge a superfície. Ele apresenta um corte, um perfil do solo, da superfície até o aquífero subterrâneo, sendo o aquífero a camada de solo saturada de água e que, no caso, está depositada sobre uma camada impermeável (rochosa). E são os aquíferos subterrâneos os grandes reservatórios que sustentam as vazões das nascentes, nos períodos de estiagens.
Se a superfície fosse impermeável, a chuva de 50 mm/h, com 30 minutos de duração, formaria uma lâmina d’água (L) sobre ela de 25 mm, assim calculada:
L = 50 mm/h x ½ h = 25 mm
Mas como a superfície é porosa, e não é isolada, parte da chuva infiltra no solo e outra parte escoa, gerando as enxurradas. Do volume infiltrado, parte fica retida nos primeiros centímetros do solo e acaba voltando ao ar pela transpiração das plantas ou por evaporação direta, conjunto que é conhecido por evapotranspiração. Este fenômeno é responsável pela devolução de aproximadamente 70 % das chuvas recebidas. Ou seja, dos 25 mm seriam devolvidos 17,5 mm. Restariam 7,5 mm (30 %) para serem trabalhados. Aí começa a se manifestar o comportamento hidrológico de bacias que só têm conseguido colocar em seus aquíferos a média de 8 % dos volumes de chuvas recebidos anualmente. A literatura especializada diz que uma bacia hidrologicamente bem equilibrada é capaz de conduzir até 23 % dos volumes anuais de chuvas para os seus aquíferos. Vamos adotar, nos exemplos a seguir, a meta ambiciosa de 20 %. Mas a metodologia descrita permitirá fazer cálculos para metas menos ambiciosas
Exemplos
Alternativas para fazer com que uma bacia, que está em franco processo de adensamento populacional, possa, mesmo assim, colaborar para o aumento da vazão disponível nos períodos de estiagens. Em todas as situações, estaremos considerando a superfície sendo atingida por uma chuva de 50 mm/h, com 30 min de duração.
1) Uma propriedade rural de 30 ha (300.000 m2), sendo 15 ha de pastagens degradadas, 5 ha de culturas diversas e 10 ha de matas nativas e áreas de preservação permanente.
Seria desejável que o aquífero recebesse um volume Aq de água, assim calculado:
Aq = 300.000 m2 x 0,025 m x 0,20 = 1.500 m3
Como sabemos que a infiltração natural em áreas rurais degradadas da bacia está em torno de 10 mm/h, o volume infiltrado durante os 30 min de duração da chuva (Vi) será de:
Vi = 300.000 m2 x 0,005 m = 1.500 m3
À primeira vista, parece tudo bem, mas acontece que em torno de 60 % desse Vi está comprometido com a transpiração e não tem condições de chegar ao aquífero, que só vai receber 600 m3, ou seja, 40 % de 1.500. Fica um déficit de 900 m3 (1.500-600) que precisa ser sanado com a melhoria da velocidade de infiltração, o que poderá se feito com algumas práticas, tais como:
a) Melhoria do estado vegetativo de pastagens degradadas e o manejo adequado do pastejo. Isso poderá passar a velocidade da infiltração dos atuais 10 para 14 mm/h. O acréscimo de 4 mm/h resultará em novo Vi de:
Vi = 300.000 m2 x 0,007 m = 2.100 m3, com o aquífero recebendo 840 m3
Mesmo assim continua um déficit de 660 m3 e que deve ser satisfeito com a construção de terraços, caixas de captação de enxurradas, barraginhas, cisternas de infiltração e outras tecnologias apropriadas à exploração econômica da propriedade.
Se nos 15 ha de pastagens puderem ser construídos terraços de base estreita, só eles serão capazes de reter entre 500 a 600 m3 de possíveis enxurradas. Cada 100 m de terraço de base estreita, com 0,30 m de largura e 0,25 m de profundidade, são capazes de reter 7,5 m3 de água (0,30 x 0,25 x 100). Vale ressaltar, ainda, que a meta de 20 % não precisa ser contemplada numa única etapa, pois é bastante ambiciosa. Talvez adotar, de início, a meta intermediária de 17 %, que reduziria o déficit para 1.275 m3.
Vale ressaltar, aqui, que tais tecnologias envolvem custos de implantação e conservação que, na maioria dos casos, estão além das capacidades financeiras dos produtores rurais. Aí deve entrar a figura do Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), com recursos da comunidade. A água é um bem de domínio público e, mesmo que nasça em sua propriedade, o produtor rural precisa de licença par captar parte dos volumes produzidos. Não é razoável, portanto, que ele seja o único responsável por cuidar dela. Municípios como o de Extrema, no Sul de Minas, já disponibilizam recursos para PSAs em seus orçamentos.
As Figuras 2, 3 e 4 ilustram algumas tecnologias para o meio rural, já implantadas e testadas pela concessionária de abastecimento de água da cidade de Viçosa-MG (SAAE), na bacia hidrográfica do Ribeirão São Bartolomeu, que é um dos seus mananciais de abastecimento. Em uma de suas pequenas sub-bacias trabalhadas foi constatada a duplicação dos volumes de água produzidos pelo respectivo córrego, nos períodos de estiagens.
2) Nas áreas em processo de “urbanização”, vamos supor um lote de 1.000 m2, ocupado com uma área construída de 200 m2, recebendo a mesma chuva de 50mm/h, com duração de 30 min
Aq = 1.000 m2 x 0,025 m x 0,20 = 5 m3
Água recolhida pela área construída (telhado, laje e terreiro)
Vi = 200 m2 x 0,025 m = 5 m3
Como Vi = Aq, basta a construção de cisternas de infiltração com capacidade volumétrica de 5 m3, com custos irrisórios em relação ao investimento total no imóvel.
O esquema da Figura 5 mostra um arranjo para o sistema.
3) Vamos admitir um lote bem menor (200 m2), que não seria desejável em projetos de urbanização planejada na bacia, mas que pode já existir por lá. Área construída de 70 m2.
Aq = 200 m2 x 0,025 m x 0,20 = 1 m3
Vi = 70 m2 x 0,025 m = 1,75 m3
Fica fácil, no caso, construir uma cisterna para coletar os 1,75 m3, o que elevaria o Aq para 35 %, já que a chuva de 50 mm/h, com duração de 30 min, despejaria sobre ela o volume de 5 m3 de água (200 m2 x 0,025 m).
Observação: Os volumes infiltrados pelas cisternas não sofrem (ou sofrem muito pouco) as perdas por transpiração, já que a passagem da água para o solo se dá em profundidades maiores do que as ocupadas pela grande massa de raízes. Os terraços também sofrem menos, principalmente se em pastagens, já que a maioria das forrageiras tem raízes predominantemente rasas.
4) Outras situações
Há soluções, com base nos mesmos fundamentos discutidos até aqui, para serem usadas em estradas, ruas, calçadas e praças. São trincheiras de brita, caixas ao longo de estradas, tubulações de águas pluviais com perfurações e assentadas sobre leitos de brita e muitas outras combinações.
Uma contabilidade de água
Brincando um pouco com números e aproveitando, ao mesmo tempo, para justificar mais o otimismo com as soluções apresentadas, vamos considerar uma bacia hidrográfica com 3.000 ha, como a do ribeirão São Bartolomeu, já citada, que abastece 50 % da população de Viçosa-MG e 100 % do Campus da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Ela que recebe precipitação anual de 1.250 mm (1,25 m).
Calculando o volume anual recebido (Var), temos:
Var = 3.000 ha x 10.000 m2/ha x 1,25 m/ano = 37.500.000 m3/ano
Como a evapotranspiração (60 % de transpiração + 10% de evaporação) devolve 70%, o volume que sobra para ser trabalhado (Vt) é de:
Vt = 37.500.000 m3/ano x 0,30 = 11.250.000 m3/ano
Como a população de Viçosa e da UFV, servida pela bacia, está em torno de 60.000 habitantes e que a distribuição de água corresponda ao volume de 200 litros (0,200 m3) por habitante e por dia (L/hab.dia). O consumo total anual (Cta) será de:
Cta = 0,200 3/hab.dia x 60.000 hab x 365 dias /ano = 4.380.000 m3/ano
Comparando com os 11.250.000 m3 do volume de trabalho (Vt), já calculado, seria possível dobrar a captação e ainda garantir vazões médias do curso d’água, abaixo do ponto de captação, acima de 80 L/s, ao longo de todo o ano.
Mas hoje a realidade da bacia é muito diferente, pois a s vazões de estiagens caem abaixo de 100 L/s e não permitem a captação normal necessária, que é de aproximadamente 140 L/s
Os números, apesar de teóricos, podem servir para justificar o emprego de tecnologias de recarga artificial de aquíferos, como as descritas nos Exemplos dados.
Considerações finais
As informações aqui apresentadas têm a intenção de provocar um debate técnico sobre o futuro do abastecimento de água no país, já que o assunto vem merecendo um tratamento difuso e, em muitas situações, com viés ideológico e apelo emocional. Precisamos: primeiro, que todos os níveis de administração (federal, estaduais e municipais) passem a considerar a água como prioridade; segundo, que as necessidades de recursos financeiros sejam garantidos nos orçamentos; e, terceiro, que tecnologias alternativas aos ecossistemas naturais passem a ser efetivamente adotadas, mas com base nos princípios da hidrologia e do manejo de pequenas bacias hidrográficas, onde começa a produção de água.
* Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, professor aposentado da UFV
e especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas. Autor dos livros “Conservação de nascentes: Produção de água em pequenas bacias hidrográficas” e “Das chuvas às torneira: A água nossa de cada dia”
valente.osvaldo@gmail.com