Nóos vem do grego e significa espírito. Daí vem noologia, ciência que se dedica ao estudo do espírito.
Desde há, no mínimo, três décadas, vemo-nos perguntando qual a diferença entre alma e espírito. O Novo Dicionário Aurélio praticamente não diferencia um do outro; parecem sinônimos. Igualmente o Vocabulário Filosófico de Carlos Lopes de Matos considera ambas as palavras como sinônimas (1). Observa-se, contudo, uma interpretação mais generalizada para a palavra espírito e um sentido mais específico para a palavra alma. Em todas essas tentativas de definição o uso das palavras alma e espírito tem conotação transcendental, teológica, algo além da matéria. Tem vínculos com a espiritualidade.
Nos tempos atuais, do século XX ao início do século XXI, começam a existir condições para uma abordagem científica dessas duas palavras. Seus vínculos com a realidade e o concreto tornaram-se mais perceptíveis aos olhos do cientista. Tais condições culturais jamais foram possíveis de existir anteriormente na história da humanidade.
Entretanto, refletir sobre o tema é da maior relevância para a humanidade. Primeiramente, para que tome consciência desse fato real e concreto. Segundo, para que crie posturas de caráter ético, uma vez que existe a possibilidade de que, ao não assumir essa “nova realidade”, a humanidade descambe para a amoralidade e a destrutividade. Esse risco existe e já com indícios bastante concretos. De outro lado, podemos afirmar que tal enfoque possibilita que a humanidade dê um salto qualitativo em sua evolução, para seu próprio benefício, como um todo, e não mais restrita aos interesses de uma minoria dominante.
O primeiro impulso científico para essa abordagem veio da teoria da análise de sistemas, que criou um método para abordar equações matemáticas insolúveis, devido a seu elevado número de incógnitas (2). A teoria parte do princípio de que é preciso detectar os elementos em jogo numa equação, descobrir se existem relações ou não entre eles, anotá-las num diagrama, e, em seqüência, caso existam, tentar identificar os tipos de relações em jogo. Com isso passa-se a identificar as partes das equações e começam a surgir possibilidades de se definir quais incógnitas estão em questão e a possibilidade de mensurá-las. Percebem-se, regra geral, tais componentes em figuras onde se pode facilmente visualizar a questão. Essa teoria foi base para grande parte do imenso progresso científico a partir do século XX, com subsídios para diversas ciências, tais como física, cibernética, informática, medicina e tantas outras. Inversamente, pensar através de sistemas facilita o entendimento de inúmeros temas altamente complexos, possibilitando um entendimento inicial simplificado que facilita o entendimento do complexo. Essa teoria também é fundamental para a Ecologia, principalmente para o entendimento do que se convencionou denominar ecossistema, ou seja, sistema ecológico. E é justamente a partir da Ecologia – o segundo impulso científico-, que desenvolveremos nossa exposição sobre o tema-título.
As palavras-chaves para se pensar ecossistema e suas relações com a alma e o espírito são: natureza, equilíbrio ecológico, interferência do homem, paisagem, paisagem cultural. Inicialmente a presença do homem, que vivia da caça e da coleta, não afetava o equilíbrio ecológico e a natureza se constituía num sistema fechado, ou seja, funcionava por si próprio através das inter-relações entre seus elementos: solo, clima, flora, fauna e o homem. Quando o homem começou a interferir na paisagem, através da prática da agricultura, introduziu componentes tais como o trabalho, os adubos, o capital (e isso já a partir da agricultura original na Mesopotâmia). Assim, a biomassa que a natureza produzia e que era re-incorporada naturalmente (automaticamente) ao ecossistema, começou a ser retirada deste para atender aos anseios e às necessidades do homem. Ou seja, foram acrescentados dois componentes, uma “entrada” e uma “saída”, e o sistema ambiental, que antes funcionava como um circuito fechado se tornou um sistema aberto. Com o aumento da interferência do homem na paisagem, aumento da dimensão das áreas agrícolas, crescimento das cidades, construção de estradas e barragens, as entradas e saídas começaram a ampliar-se enormemente, alterando-se o equilíbrio ecológico.
Acrescentando-se a tudo isso outras entradas tais como a urbanização, estradas, açudes e, simplesmente, toda a produção cultural do homem, – desde o ruído ocasionado por suas obras à música ouvida nos teatros, incluindo toda a produção científica da agronomia, medicina, economia, etc., bem como a artística: esculturas, pinturas, obras arquitetônicas – , ficou registrada na paisagem e caracteriza-se como interferência na natureza. Hoje não vemos muito sentido em falar tão-somente em natureza, mas é necessário falar-se em paisagem, merecendo um estudo através do que se vem chamando de ecologia da paisagem, envolvendo natureza-e-homem integrados. Em novíssima terminologia, o original sistema ecológico fechado, o qual passou a ser aberto, deveria hoje ser denominado eco-sócio-psico-sistema (figura 1), sendo os aspectos psicossociais considerados como uma entrada (input) no sistema.
Para que mantenha um estado de equilíbrio, embora alterado, com a natureza, o homem deve aprender a administrar sua interferência,- o que chamamos de manejo (3). A administração envolve, por exemplo, cuidados com a preservação da quantidade e qualidade da água, preservação dos solos agrícolas, áreas verdes para recreação, preservação de áreas em estado natural como as Reservas Ecológicas e diversas outras metas. Esse manejo, essa administração dos recursos, implica em custos financeiros.
Acontece que toda essa obra humana inscrita na natureza, ou como estamos dizendo, na paisagem, incluindo até mesmo os textos, constituem-se em espelho da ação e do pensamento humanos. E, como tal, envolvem a alma de cada indivíduo e o espírito das comunidades. Perguntamos: em termos científicos, não poderíamos definir aqui Alma como a expressão vital de cada ser humano, e Espírito como o conjunto das expressões vitais da humanidade, – desde o passado remoto ao tempo presente, incluindo mortos, vivos e os por nascer? Nesse contexto, Alma pode ser algo pertencente a um único indivíduo, diferente de cada um dos demais, e Espírito, a integração das almas. Para o que pretendemos expor, não há necessidade de se acreditar numa alma imortal. Aqui, tanto faz se ela morre ou não ao morrer o corpo físico. Não se trata de um questionamento sobre o real e o transcendente. O que interessa aqui é saber que a expressão vital de cada um de nós produz uma ação e uma interferência no meio onde vivem os demais seres. Seres vivos no planeta Terra.
Ora, para entender o que está acontecendo na vida planetária, não há necessidade de se ter grau universitário. Isso está sendo disponibilizado simultânea e indistintamente a toda a humanidade. Basta uma única condição: estar atento às suas relações com o ambiente, manter os olhos abertos ao que ocorre na paisagem e absorver mentalmente seu conteúdo. Em outras palavras, basta estar integrado na comunidade como agente passivo e ativo.
Quanto à questão da dicotomia entre o real e o transcendente, cremos não ser fundamental para nossa proposição, mas tem implicações preciosas. Após a leitura de “Eu e tu” de Martin Buber (4), teólogo judeu do início do século XX, tais implicações ficaram claras para nós. Tentaremos sintetizá-las. A obra poderia ser dividida em duas partes:
a) a primeira trata das relações entre o eu e os demais eus com que nos defrontamos, ou seja, os tus; é praticamente um tratado de ecologia e descreve detalhadamente como ocorrem os relacionamentos, incluindo aí os demais seres vivos, animais e plantas e, os não-vivos desde a paisagem e a natureza como um todo até as obras de arte produzidas pelo homem;
b) a segunda desenvolve o relacionamento eu-tu, tratando da necessidade de se multiplicarem as relações com os tus; estas seriam maiores e melhores segundo dadas condições, das quais a mais importante é a de manter relações autênticas, diretas, francas e espontâneas; assim, o eu-tu transforma-se no Tu absoluto, ou seja, Deus. Poderíamos aqui substituir Deus por Vida ou Natureza.
Assim, os agnósticos, nesse ensaio, não necessitam de assimilar o conceito Deus. Sem entrarmos no mérito, queremos ressaltar a importância e coerência dos conceitos da primeira parte para o nosso ponto-de-vista teórico-sistêmico, eis que tratam simplesmente da realidade humana concreta, do que e como acontece com cada um de nós ao estar diante do outro e da obra humana. Julgamos que aí poderia estar uma das bases para a psicologia desenvolver a psicanálise, individual ou em grupo, quando o analista procura exclusivamente na sala onde se dá a relação analista X analisando transformar a relação entre ambos no fato real que pode ser analisado naquele momento. Para o analista, o que ocorre ou ocorreu fora da sala, pode ser altamente questionado como sendo fatos reais. Enquanto que aquilo que ocorre na relação durante a sessão de análise, – conhecido através das palavras do analisado -, é fato real inquestionável diante do profissional. O conjunto dessas relações eu-tu pode ser exposto através de um sistema ( Figura 2).
O terceiro impulso científico é tecnológico, com a comunicação mundial instantânea, também uma conseqüência da teoria da análise dos sistemas. Esta tem progredido extraordinariamente, possibilitando a milhares de pessoas, espalhadas por todo o mundo, se concentrarem mental e simultaneamente para um único evento numa sincronia jamais ocorrida antes: uma multidão de pessoas, cada uma com sua expressão vital, integrando-se e passando a constituir-se numa “força” de grande poder (extensão). Lembrem-se os mega-eventos da morte de Ayrton Senna, a morte de Dyane, as exéquias do papa João Paulo II e os jogos da copa do mundo, para citar os mais recentes. Tal conjunção sincrônica de almas é fato histórico (pós-histórico, no sentido de Vilem Flusser) e sua potencialidade é algo ainda a ser estudado adequadamente. Não temos dúvida de que se trata de uma força mental e psíquica que, de algum modo, deve atuar no ambiente, positiva ou negativamente. Esse fato “histórico” indubitavelmente tem influência as mais diversas nas comunidades em todo o mundo e sobre as mais diferentes culturas. O futebol, mesmo para os que não o apreciam, torna-se instrumento de vínculo das almas de todo o mundo.
Os cientistas, em especial aqueles dedicados à ecologia da paisagem, vêm reconhecendo esse componente como o nóos e o tem denominado de noosfera. Um desses cientistas é Jan I. S. Zonneveld, que em 1990, elaborou as figuras 3 e 4 anexas (5). Eis uma maneira de começar a pensar sobre o tema, através da teoria da análise de sistemas.
Rodolfo Geiser
21. de agosto de 2006.
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BIBLIOGRAFIA.
(1.) Editora Leia, 1957. Carlos Lopes de Mattos, Doutor em Filosofia pela Universidade Louvain; ex-catedrático de História da Filosofia Moderna e de Filosofia Social na Faculdade de São Bento, (São Paulo). Alma. S.f. Princípio vital do corpo, nos seres vivos em geral. No homem, princípio de vida e de pensamento. Nota: No aristotelismo. A alma é forma natural (enteléquia) do corpo, dividindo-se em vegetativa, sensitiva e intelectiva. No platonismo e, sobretudo, no cartesianismo, – perfeitamente distinta do corpo, tendendo a definir-se só como princípio do pensamento. Cf. Dualismo, espírito, espiritualismo. Espírito, s.m. 1. Alma. Op. Corpo. 2. A alma enquanto pensamento. Op. Matéria. 3. Ser totalmente independente da matéria. 4. A parte superior da alma. Op. sensibilidade. 5. Qualidade que norteia uma atitude, ou uma atividade (espírito crítico, espírito filosófico, etc.) 6. Núcleo, idéia central ou senso íntimo de alguma coisa. Op. Letra. Noologia, s.f. Doutrina do espírito, seja do espírito em geral, seja do espírito humano. Cfr. Gomperz, ciência intermediária entre a lógica e a psicologia. Família de palavras), s. Cfr. Kant, racionalista que admite as idéias inatas.
(2.) Teoria Geral dos Sistemas. Ludwig von Bertalanffy. Universidade de Alberta, Edmonton, Canada. Editora Vozes Ltda., Petrópolis, RJ. 1973.
(3.) Oliveira, Manoel Carlos de e Rodolfo Geiser, trabalho apresentado na 28º Reunião Anual da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, ” A Natureza e o Homem no Estado de São Paulo: a necessidade de um Órgão de Controle Técnico, Científico e Administrativo” (em equipe) – Brasília – Jul.1976.
(4.) Buber, Martin, Eu e Tu. Editora Moraes, São Paulo- SP. 1984 (?).
(4.A.) Buber, Martin, Do Diálogo e do Dialógico, Editora Perspectiva, São Paulo- SP., 1982.
(5.) Zonneveld, Jan I. S. – Landschapsecologische Structuur-Modelen., 1990., K.N.A.G. Geografisch Tijdschrift XXIII (1990), nr. 4, pp. 319 à 327, Holanda.
Nota.- Os textos e palavras das figuras nº 3 e 4, de Zonneveld, foram traduzidas pela Irmã Iolanda, da Ordem Beneditina em Ribeirão Preto – SP. Fica aqui nosso agradecimento.
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