Em diversos momentos de minha vida, durante estes últimos anos, tenho utilizado em diálogos o termo pós-história. A maioria das pessoas o estranha e me vejo intelectualmente obrigado a expor em mínimas palavras o que estou pensando. Em primeiro lugar, devo esclarecer que não o estou utilizando no conceito adotado pelo nipo-norte-americano FUKUYAMA, que o utilizou lá pelos anos 1980. De maneira bastante resumida, – e talvez simplificada,- ele dizia que, em função de um mundo globalizado e neo-liberal, haveria uma economia mundial única, `a qual todos os habitantes do mundo teriam de se curvar e se adaptar. Não haveria mais guerras mundiais. Seria o “fim da História”.
Tais colocações lhe granjearam inúmeros inimigos, principalmente entre os historiadores. Por outro lado, ganhou alguns poucos e poderosíssimos amigos: todos aqueles que representam a minoria privilegiada que detém a imensa parcela dos recursos financeiros em prol de seus próprios interesses. Surge, em conseqüência, aquilo que muitos de nós já comentamos no dia-a-dia: o capital está concentrado nas mãos de poucos em prejuízo da imensa maioria da população mundial. O prejuízo global passa desapercebido até pelos prejudicados, devido à ação da mídia comprometida com o capital, e por assim dizer, com a des-educação geral. São incalculáveis os recursos financeiros exigidos para criação da imagem institucional globalizada, a fim de tornar tal situação irreversível, como também para reforçar a tendência mundial em não canalizar quaisquer recursos para a educação da maioria desprivilegiada. O propósito administrativo-financeiro-cultural é claro, pois qualquer dose de educação faria com que essas pessoas se conscientizassem e passassem a agir em sentido contrário ao movimento globalizado – neoliberal ( ou como costumava chamar Leonel Brizola,- neo-colonialista.) O conceito de FUKUYAMA, portanto, é nitidamente ideológico, uma vez que parciais e dirigido a interesses específicos. Foi tanta a gritaria dos oponentes que até os interessados nas suas idéias deixaram de utilizar o termo “pós-história”. Na realidade, em termos práticos, seu sentido “foi queimado”.
Entretanto, o termo pode e deve continuar a ser utilizado, mas com um sentido muito mais amplo e esclarecedor dos tempos atuais da humanidade e sem qualquer vínculo com a ideologia, pois fornecerá subsídios valiosíssimos para cada um de nós pensar o momento presente. Para tanto, evocaremos o pensamento do filósofo tcheco-brasileiro VILEM FLUSSER. Seu livro, “Pós-História – vinte instantâneos e um modo de usar” publicado em 1983 pela Livraria Duas Cidades, trata de diversas situações em que o homem moderno se defronta, tais como saúde, recreação, nossas roupas, nosso trabalho, nossa escola e assim por diante. Mas não é nossa intenção comentar essas linhas de pensamento para chegar ao que estamos pretendendo aqui. Relembremos a definição que ele deu ao termo no Glossário apresentado em seu livro “Filosofia da Caixa Preta”, de 1985: “Pós-História: processo circular que retraduz textos em imagens”. Interpretando a definição flusseriana, as características da Pós-História poderiam ser assim resumidas:
1. Predomínio da imagem sobre o texto. Seriam as Imagens mais eficazes que os Textos para se efetuar a comunicação e troca de informações entre as pessoas? Basta constatar o predomínio da televisão sobre a leitura de livros e a presença maciça, em todo o mundo, dos símbolos da “Coca Cola” e da “McDonalds”;
2. Comunicação mundial instantânea. Basta constatar as transmissões instantâneas da Fórmula Um e Copa do Mundo, onde milhões se “globalizam” com as mesmas imagens e paixões;
3. A prestação de serviços. Das atividades humanas, torna-se a mais importante de todas, predominando percentualmente sobre a agricultura e a indústria;
4. Conceitos básicos tornam-se difusos e confusos. Confunde-se, por exemplo, natureza com cultura ( tulipa e vaca holandesa não são naturais, mas frutos da cultura). A situação piora com seres híbridos como o chester, – galinha grande/peru pequeno -, bem como as ovelhas e vacas clonadas. O homem clonado, que acontecerá em breve (se é que já não existe), não fará mais parte do Reino Animal, quando era classificado como homo sapiens, mas será produto da Cultura Humana, não obstante construído sobre base natural (genes). Outro exemplo é a relação real x virtual. Os conceitos expostos acima afetarão a percepção da realidade pelos seres humanos, que terão dificuldades para diferenciar o real do virtual;
5. Recursos naturais e o lixo. Um dos maiores problemas humanos é o manejo dos recursos naturais, com um novo elemento altamente agravante que é o lixo produzido pela cultura e seu destino na Natureza. Vale ressaltar dois tipos de lixo: o externo, restos industriais, domésticos, produtos tóxicos injetados no ambiente e tantos outros que interferem no manejo dos recursos naturais; e o lixo interno, representado pelo imenso volume de idéias e informações disponíveis nos espaços ambientais, que interferem diretamente na mente humana que tem dificuldades em distinguí-los, diferenciá-los e digeri-los. Surgem dois profissionais novos para tratar desses lixos, respectivamente, Ecólogos e Psicólogos.
Tais características, daí, sim, levam à globalização, que pode ser considerada como a uniformização da cultura humana. Uniformização no sentido de sua tendência em igualar-se mundialmente, independente de raça, língua e nação.
Na realidade, penso que FUKUYAMA pode ter eventualmente detectado tais características do presente momento histórico, mas não as verbalizou e muito menos as expôs. Talvez tenha guardado para si tais informações, reduzindo seu conteúdo à afirmação ideológica da vitória do Capitalismo sobre o Socialismo. Do capitalismo global, único,
invencível. Ponto final da cultura humana a partir do qual nada mais mudará. Donde a indagação necessária: será o fim da História?
Ideologia da igualação X Filosofia da diversidade
Igualação, seja lá do que for, é o princípio do fim. No caso da Natureza, o que a sustem é a diversidade de vida, animal e vegetal, convivendo em equilíbrio. Alterado o equilíbrio, segue-se o desequilibro com a perda do solo, a falta de água, a intoxicação da cadeia alimentar, a poluição do ar e das águas sob todas as formas. Perdem-se as condições essenciais para a sustentação da Vida.
Esse cenário vale para o Homem. Talvez o problema ainda não seja sentido pela maioria dos habitantes do planeta. Mas é a diversidade de culturas que propicia sua manutenção e evolução. Igualadas as culturas, corre-se o risco da perda da capacidade de criação e evolução cultural, além do fato de que a igualação promove também o controle sobre os seres humanos, sobretudo no plano político. Nazismo puro metamorfoseado através da informação e da mídia em globalização inevitável.
Risco na Natureza é o seguinte: a formiga saúva sempre existiu no Brasil antes de sua “descoberta”, convivendo entre as demais formas de vida. Derrubadas as matas, desapareceram seus controladores naturais, como os pássaros e os tamanduás, e ela se expandiu incomensuravelmente passando a devorar nossas lavouras. Nos morros inóspitos de Israel tentaram o reflorestamento com 3 ou 4 espécies vegetais adaptáveis, mas insuficientes para a manutenção de um estado vital de equilíbrio. Resultado: surgiu uma broca que causa danos irreparáveis.
Nesse sentido, a visão do Ecólogo em favor da diversidade vale também para a cultura humana. E um olhar ecológico sobre as tendências da economia mundial vai, certamente, preconizar a desconcentração da renda; a promoção das médias e pequenas empresas, urbanas ou rurais; a diversidade na educação e na cultura. O Presidente Clinton pensou um pouco nessa linha quando tentou desarticular parcialmente o monopólio de informática de Bil Gates. Mas com a vitória dos republicanos, suas propostas foram derrotadas e esquecidas.
Podemos questionar: se as características que envolvem o conceito de Pós História de FLUSSER levam à mesma idéia de globalização, indiretamente defendida por FUKUYAMA, então ambos os conceitos são idênticos? Tal conclusão não seria verdadeira. Se fôssemos desenhar o conceito de FUKUYAMA, criaríamos uma reta e um ponto, enquanto que no desenho conceitual de FLUSSER, faríamos um círculo. Eu ainda proporia representar o conceito flusseriano por uma espiral, como aquela que envolve as páginas dos cadernos escolares. Porque os movimentos circulares vão sempre ocorrendo numa seqüência contínua, ao passo que no movimento espiral, o processo iniciado não volta ao mesmo ponto de origem, mas vai somente em sua direção, seguindo sempre o movimento circular, mas ligeiramente afastado do anterior. Sugere, pois, uma evolução.
FLUSSER pensou assim: Pré-História é o domínio de imagens (lembram-se dos desenhos encontrados nas cavernas?) e ausência de textos; História é a tradução de imagens em textos; e Pós-História, é a retradução circular de textos em imagens. Eu diria que, com o predomínio da imagem sobre o texto, ocorre uma espécie de inversão de valores para uma grande maioria da humanidade, enquanto que uma minoria, previamente vacinada e em certo sentido imune à propaganda, vai acumulando informações e as vai repassando à propaganda e ao marketing, a fim de manter o controle da maioria. Como as informações vão se acumulando exponencialmente, o movimento da História não seria propriamente um circulo, mas um movimento circular continuo em forma de espiral. A História mesmo nunca vai se acabar, como os críticos de FUKUYAMA concluíram.
Para FLUSSER, no meu entender, interessa ter um conceito para Pós-História, que sirva simplesmente de modelo para pensar o momento presente. Uma vez captado e utilizado o modelo, pode ser descartado, ou seja, não necessita ser eternizado em ideologia.
Rodolfo Geiser,
Engenheiro Agrônomo.
1º semestre de 2006.
rodolfogeiser@uol.com.br