MIRA SCHENDEL: a amiga e uma visão de sua obra (minuta)
A memória insiste em guardar, viva, a imagem de uma amiga, de uma arte, de um mistério… Entendo que é preciso deixar de lado temor ou pudor, na obrigação de dar meu testemunho.
Mira: a amiga, a obra, o mistério
Mira foi a pessoa mais fascinante que conheci em minha vida. E o fascínio veio de sua obra, envolta, para mim, em um mistério abissal. Um mistério que agiu sobre meu espírito (age ainda?) de modo a me cativar, como se me tornasse um escravo dele e da própria obra de Mira. Talvez por isso eu tenha sido brindado, por longos anos, com a graça de sua amizade. Desde algo em torno de meados da década de 1960 – não sei precisar com exatidão – até sua morte, em 1988.
Fui irresistivelmente atraído por sua obra. Por uma espécie de mistério transcendental, de essência, que dela parecia emanar. Aquelas letras dispersas, invertidas, traços, ângulos e curvas, o papel transparente e o acrílico que possibilitavam uma dupla visão da mesma obra… Tudo muito contido, reservado, em amplas áreas abertas, espaço aberto à nossa própria imaginação… De tal forma me atraíam aquelas obras que me via sendo sugado por elas e nelas integrado. Como se deixasse de ser eu. Ou como se eu, incorporado na obra, fosse mais importante que eu próprio.
Qual era seu mistério?
Não recordo quem conheci primeiro, se Mira em pessoa ou sua obra. Lembro-me perfeitamente de que li, no dia em que foi publicado no Suplemento Literário do Estadão, o artigo de Vilém Flusser sobre a artista e sua obra. Isso, em 1967. Durante muito tempo aquele artigo me norteou para pensar a obra de Mira Schendel. Eu gostaria de ter a bagagem de Flusser para saber escrever tão claramente, tão bem e até de forma tão poética quanto o fazia, naquele artigo… Entretanto, com o passar dos anos, ele perdeu para mim um pouco de sua força.
Flusser dizia que Mira se preocupava com o início da Linguagem, não em tempos pré históricos, mas sim no modo como ela atua no presente sobre o Homem. Assim, dizia ele que os desenhos de Mira Schendel poderiam tentar refletir os primórdios da Linguagem no primeiro balbuciar de cada ser humano. Sob esse ponto de vista, os desenhos seriam pre- textos. (Mesmo que esse primeiro balbuciar pudesse ter algo de divino…).
Hoje, não consigo mais assimilar essa expressão como reflexo da obra de Mira. Se fosse usar a terminologia de Flusser, talvez eu preferisse… pós textos. Entretanto, estas são palavras muito pobres para refletir a magnitude da obra de Mira.
Amizade com Mira
Foi uma amizade sem grandes lances intelectuais. Sendo Knut, seu marido, vegetariano, eu a levava aos restaurantes japoneses para comer sushi… Um dia, curiosa, pediu-me para levá-la ao cinema, assistir o primeiro filme do Agente James Bond, o 007, que fazia amplo sucesso naquela época. Levei-a também para visitar outros artistas plásticos com quem se dava. Uma ou duas vezes, Knut viajando, receosa, pediu-me que eu dormisse em sua casa. E visitei-a quando, por algumas semanas, ficou morando num trailer lá pela região de São Roque. Enfim, essas coisas corriqueiras…
Mira e Knut
De início eu não sabia bem como me comportar diante de seu marido e ficava sempre muito constrangido. No dia do 007, fui buscá-la em casa e quem abriu a porta foi Knut. Fiquei encabulado e não sabia o que dizer ou fazer, mesmo considerando que meu relacionamento com Mira não envolvia senão a mais pura amizade. Talvez o que me constrangesse fosse apenas a estranheza de uma relação assimétrica, com algo de benevolência por parte dela, e de fascínio de minha parte.
Depois, fiz amizade com Knut e tornei-me cliente assíduo de sua Livraria Canuto. Um dia perguntei-lhe se gostava do trabalho de Mira, ao que ele me respondeu: – Claro! Ela sempre me consulta sobre cada obra sua… Depois, percebendo que indiretamente se colocava como coautor, completou: –… logicamente, ela nunca segue meus comentários…
Mira e alguns amigos
Nos anos 1960, Mira apresentou-me a Vilém Flusser, numa visita às “tardes filosóficas” que ele promovia em sua residência, reunindo um pequeno grupo de intelectuais e outros tantos jovens sedentos por um conhecimento que não respeitava fronteiras instituídas. Flusser também me brindou com sua amizade. Guardo ainda algumas cartas suas sobre ecologia e paisagem cultural. Certa vez, reunimo-nos em minha casa para conversar sobre o significado das crateras deixadas pela mineração em Itabira, MG, e que motivaram o Poeta a abandonar sua cidade natal. Uma das cavas mede cerca de 1.200 x 2.500 metros de extensão e uns bons 400 metros de profundidade… Estávamos: Mira, Flusser e sua esposa, Milton Vargas, Maria Lilia Leão, José Resende e Valdemar, um engenheiro cujo sobrenome me escapa à memória. A natureza e sua transformação, o trabalho humano, a técnica, a apropriação e a devastação do progresso…
Através de Mira, conheci José Resende e seu amplo ateliê na Rua Doutor Esdras, Amélia Toledo, creio que na Rua Groelândia. Lá fomos também com Sonia Laboriau, de Belo Horizonte. Mira aos poucos me abria janelas para perscrutar algo de seu mundo e das ideias que a rodeavam. De outro ramo de relacionamento comum a ambos, havia também Edmar de Almeida, multifacetado mineiro de Uberlândia, que fez uma exposição no MASP a convite de Lina Bo Bardi.
Mira era muito amiga de Monica Filgueiras, marchand e proprietária de uma Galeria de Arte que leva seu nome e que inclusive era uma das responsáveis pela promoção de sua obra. Um dia, vendo-me solitário, Mira me disse: – Rodolfo, por que você não sai com a Mônica? Era uma moça de um corpo avantajado e de um rosto belíssimo, de feições delicadas. Sem duvida, uma tentação. Alguns dias depois jantávamos os três juntos.
Dessa maneira, Mira se colocava como a irmã mais velha e ilustre.
Conversas com Mira sobre sua obra
Pouco me lembro de conversas com Mira sobre sua obra. Uma vez perguntei-lhe, pensando nos desenhos dos caquis, qual era seu critério na distribuição das formas no papel de desenho. Não me lembro de sua resposta exata, mas restou-me a ideia de que sua distribuição era resultante de uma preocupação de arranjo do espaço. Algo mais ligado à Arquitetura, ou antes, à arquitetura interna da própria obra, por onde se construía seu mistério. Assim, voltando a Flusser, não se trataria propriamente de “regiões de papel vazio e de silêncio prenhe de futura língua”, mas, antes, prenhes da ânsia por uma relação mais profunda e indizível, vinculada com o sagrado, se me fosse permitido dizer assim…
Em outra oportunidade, depois de voltar de uma viagem à Itália e outras partes da Europa, Mira mostrou-me algumas fotos de paisagens que por lá havia tirado, e tivemos uma longa conversa sobre elas. Todas as fotos no sentido vertical, predominando a altura sobre a largura da imagem. Como, aliás, ocorre na maioria de seus desenhos. Uma dessas fotos, muito interessante, captara, visto de longe, um trem, cuja horizontalidade rivalizava com o horizonte na paisagem. Assim, na área da foto vertical, predominava a parte do terreno em primeiro plano e, em último, o céu.
É o mesmo sistema de percepção do espaço de um desenho que Mira fez para mim, em razão do meu trabalho como paisagista e ecólogo. Tal como com o trem na metade inferior da foto, nesse desenho há alguns poucos traços seguindo o impulso da linha horizontal, que delimitam, para o alto, um azul de céu escuro e, para baixo, uma mancha de cor bronze, representando um terreno devastado sem vegetação. Abaixo, no centro da parte em bronze (ou mais apropriadamente, em cor de terra bruta prestes a ser cultivada), um bem pequeno ramo com seis folhinhas na cor verde. Assim, a maneira de encarar céu e terra nos seus desenhos sugere também uma maneira de ver sua obra, justificada por esse desenho, que conservo com carinho em meu escritório.

Em outra ocasião, do alto da suposta competência do meu conhecimento técnico, fiz alguns comentários críticos sobre a série Paisagens de Itatiaia e Mira não gostou. Calou-se; não disse nada. Na vez seguinte em que nos encontramos, Mira puxou um envelope e dele tirou uma série de fotos, todas também no sentido vertical, mostrando paisagens de Itatiaia, seus morros e o predomínio da neblina no entorno. Mira focara um, dois, três morros, cuidadosamente organizados no formato da foto, e simplesmente me disse: – Veja! Eram seus desenhos in vivo… Entendo que para conhecer o trabalho de Mira, pode ser muito produtivo analisar as fotos que tirou. Ela utilizava uma máquina bem simples, dessas populares, sem recurso adicional algum.
Sua obra certamente pode ser comparada com outras que guardam um espírito minimalista. Tanto que ela cuidava que sua assinatura não desorganizasse ou competisse com o restrito conteúdo em traços e formas de cada trabalho. Para assinar os desenhos, ela utilizava um estilete metálico pontiagudo ou um lápis de grafite duro tipo “2H”, bem apontado. Não é fácil achar sua assinatura no desenho.
Um dia Mira mostrou-me uma camiseta bordada. Dessas comuns, branca, com duas ou três faixas horizontais, construídas por pequenas formas retangulares, quase quadradas, medindo cerca de 1 x 1,2 cm cada retângulo. Todas em sequência. Cada retângulo era de um desenho singelo, colorido, muito bonito. Disse-me: – Rodolfo, o que acha dos desenhos desse bordado? Foram feitos pela Mucci… (sua filha Ada – seria assim que se escreve?). Não me lembro do que eu disse, mas sei que era um conjunto discreto, muito bonito. Dava vontade de vestir a camiseta… Mira estava muito orgulhosa, constatando que sua filha incorporara, ao menos em parte, algo do modo de pensar de sua obra.
Mira trabalhando
Interessante e talvez muito importante era o tipo de concentração e invocação de energias para a ação que Mira punha na criação da obra. Tinha a impressão de que ela consumia até a última gota de sua energia ao realizar cada traço. Ela se exauria. Pude vê-la estatelada ao chão, tal como um boxeador nocauteado, sem forças para levantar-se, após fazer um único e decisivo traço em uma tela: ela jogara toda sua energia naquele gesto. Nesse dia não saímos para comer sushi. Ela não conseguia levantar-se do chão. Para onde se dirigia tal esforço inavaliável, que parecia transpor e transcender sua obra? Mais tarde vim a compreender que talvez ele buscasse se dirigir (desesperadamente) ao intangível de um Outro absoluto, esforço quase vão para uma resposta que não viria…
Mira vivia para criar sua obra: estudar, refletir, incansável e ininterruptamente, tecer laços entre amigos, doar até seus trabalhos para os mais íntimos. Uma vida de monja, que parecia constituir a base para uma libertação de vínculos com bens materiais. Por isso, além da obra em si, seu comportamento também me intrigava. Tentava em vão resolver o mistério.
Referências intelectuais e algumas pistas: Mira e seus mentores?
Com Mira, conversava mais sobre filosofia. Ou seja, era ela quem falava. Mira foi uma grande intelectual, sem dúvida. Uma pessoa obcecada por ideias. Sempre que nos encontrávamos, metralhava-me com suas reflexões sobre Walter Benjamin, Martin Buber e Konrad Lorenz. Não que eu possa hoje, com segurança, repetir alguma coisa dessas conversas. Mas posso assegurar que esses três nomes eram uma constante. Diante de mim, para Mira, outros pensadores vinham bem depois, como se não houvesse um quarto, quinto ou décimo em importância que se seguisse. Também não posso dizer que isso se repetia com os outros amigos seus ou se era um menu restrito ao amigo Rodolfo, paisagista e ecólogo, para o qual Mira incluiria, como prova de condescendência, algo do universo biológico, na figura de Konrad Lorenz.
E Mira não parava de falar, restando pouca oportunidade de expressão ao interlocutor, em especial, como é óbvio, no meu caso. Era quase um monólogo. E eu, mais novo, vindo de uma escola do interior do Estado, ficava entre admirado e extasiado diante de Mira…
Um denominador comum
Com o passar dos anos, em especial após a morte de Mira, transcorrido um quarto de século, fiquei ruminando o que poderia haver de comum entre aquelas três personalidades de reconhecimento mundial que sempre retornavam em nossas conversas. O que poderiam refletir na obra de Mira.
Konrad Lorenz é o médico austríaco famoso por suas pesquisas sobre comportamento e instinto dos animais, um dos criadores da Etologia, e que depois se aventurou a estender sua reflexão aos padrões de comportamento humano, o peso que sobre ele exercem a domesticação e a civilização. Benjamin é o filósofo da arte e da estética, da teoria da crítica da obra de arte, indissociável de sua preocupação com as relações humanas na vida social. O filósofo que, de um ponto de vista diametralmente oposto ao de Lorenz, no entanto conclui, como ele, que a história da civilização é, antes de tudo, não a narrativa de uma cadeia de acontecimentos, sempre agenciada pelos vencedores, mas a expressão de “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés”, sob o efeito de “uma tempestade que chamamos de progresso”, como diria em sua análise admirável do Angelus Novus de Paul Klee.
Comportamento e instinto, vida social, cultura e história, conquista ou perda de sentido para a vida humana, tudo isso nos remete a uma questão central, que é a do universo da comunicação. Ao lado dos outros dois pensadores, Buber figura como o mestre do diálogo, comunicação entre os homens, e autor de um texto consagrado, Eu e Tu, no qual sugere (quase diria, demonstra) uma comunicação espiritual, que redundaria numa permanente ânsia humana em direção a um Tu absoluto (chamemos o que quisermos esse absoluto).
Todos eles são parte de um mesmo longo período de tensão e intensa reflexão, do início do século passado à II Guerra Mundial, numa encruzilhada histórica que põe em jogo o destino da humanidade em seu conjunto, entre perspectivas antagônicas que, no entanto, se cruzam e em vários momentos convergem de um modo à primeira vista paradoxal. Socialismo, comunismo, sionismo, nacional socialismo, nazismo. A crença no poder transformador revolucionário da ação humana e a certeza do poder, sombrio ou liberador, de um inconsciente que escapa à racionalidade de todo propósito. Cubismo, Bauhaus, Arte Abstrata, Expressionismo, Surrealismo. No interior desse tempo, um círculo judaico de notáveis pensadores. Benjamin foi por toda vida amigo de Gershom Scholem, mantendo com ele sólida correspondência. Scholem, o estudioso da Kabbala e o grande pensador da mística judaica. E que manteve uma acirrada polêmica com Martin Buber, outro grande continuador da tradição mística judaica, acusado de “personalizar” conceitos abstratos da Kabbala, embora assim buscasse devolver a tradição ao tempo presente e de uma perspectiva existencial e humanista ampla.
Tudo isso deveria estar, de algum modo, interligado com o trabalho de Mira. Assim, fui formando um amálgama disso tudo: a obra desses três homens nos remete à preocupação com a relação entre os seres do mundo, a comunicação dos homens com o mundo, sua relação com o instinto, que partilham com os animais, o diálogo com os outros homens, e a busca espiritual como pano de fundo, nesse universo marcado pelo tema constante da religiosidade e da mística judaica. Poderíamos talvez sintetizar isso tudo como ‘preocupação com a Vida’, incluindo a vida natural e a espiritual.
Há algo de ecologia também em Buber: a primeira parte de Eu e Tu pode ser entendida como uma reflexão antropológica e de ecologia humana, no sentido de que Buber descreve como cada ser humano vai formando sua consciência em sua relação com as coisas do mundo e com os demais seres humanos. E mais: em Walter Benjamin e seu trabalho sobre a crítica na arte, a referência à religião como fulcro da cultura é fundamental, quando observa que o original de uma obra de arte, por sua raridade, transmitiria uma ‘aura’ religiosa de eternidade, enquanto obras modernas, de um mundo profano, na era de sua reprodutibilidade técnica, como ocorre com as obras cinematográficas, multiplicadas, seriam desprovidas desta característica.
Seriam esses os denominadores comuns que teriam ressonância no trabalho de Mira? De comum nos três mestres, preocupações ligadas com a Vida, como ela funciona, como os seres se relacionam e se comunicam, suas linguagens e o ”sistema” em que estão envolvidos – entendendo-se esta palavra como a expõe Ludwig Von Bertalanffy em sua Teoria Geral dos Sistemas ou, como prefiro chamá-lo, um eco-socio-psico-sistema.
Talvez, dentro do universo de ideias desses três intelectuais, e no contexto de um eco-socio-psico-sistema, Mira expandisse sua reflexão voltando-se para as condições de Vida necessárias ao equilíbrio psíquico, à ampla produção intelectual e criação artística e à ‘evolução’ espiritual de cada ser humano. Ela falava muito na vida agrícola dos Kibutz em Israel e de uma ideia então corrente na China, que postulava que cada chinês vivesse parte de sua vida na zona urbana e parte na zona rural: ambientes diferentes trariam maior riqueza e equilíbrio para todos, em beneficio da sociedade.
Buber: Vida espiritual e vida no Espírito
Refletindo sobre meu convívio com Mira, seu comportamento, o modo como a vi relacionar-se com seus amigos e, sobretudo, com sua própria criação artística, acredito ser necessário dizer, no interesse desta crônica, que dos três intelectuais que sempre voltavam às nossas conversas, Buber pode ter sido o que mais teve influência na sua obra. Qual poderia ser sua luz?
Arriscando-me a resumir de forma simplificadora um pensamento sutil, Martin Buber entende que o Homem, em seu processo evolutivo, cria a si mesmo ao criar a Cultura, representada pelas inúmeras facetas com que cada comunidade humana se relaciona com o meio ambiente, produz suas ideias e valores, suas formas de arte e comunicação, criando um conjunto de informações que são armazenadas e transferidas para as gerações futuras. Tudo isso visa “a conservar, a facilitar, a equipar a vida humana”, constituindo o que chamou de ‘vida espiritual’. Em contrapartida, chama de ‘vida no Espírito’ algo que é uma decorrência da comunicação humana, da experiência do diálogo entre o Eu e um Tu, criando um vínculo muito forte entre um e outro, uma “força-de-relação” que, para o homem, é o “único poder, aliás, que lhe permite viver no Espírito” (1.). Assim, não se pode confundir ‘vida espiritual’ com ‘vida no Espírito’, que chegam mesmo a se opor, pois, segundo Buber, “esta ‘vida espiritual’ representa geralmente um obstáculo para uma vida do homem no Espírito”, ao se constituir num véu (2.) que interfere nas relações entre os homens que age “em detrimento de sua força-de-relação” que só a experiência verdadeira do diálogo é capaz de criar.
A ‘vida espiritual’ relaciona o homem com o mundo e cria um tipo de vínculo que Buber denomina de Eu-Isso, uma relação – unilateral, mesmo quando estabelecida com outros homens – que não tem a força da relação Eu-Tu, a qual transcende o mundo das coisas, num vínculo propriamente humano de diálogo e reciprocidade. A relação do homem com o mundo não tem uma importância significativa na evolução de cada um em direção a uma autêntica ‘vida no Espírito’, ainda que forneça a sua base, que demandou milênios para se processar… Funcionariam assim como dois tipos ou níveis distintos de experiência da realidade: a da vida cotidiana do mundo, permeada pela ‘vida espiritual’ da cultura, e a ‘vida no Espírito’, experiência humana que transcende a primeira, mesmo que nela tenha suas raízes, e aponta para ainda outro tipo de experiência, da ordem do sagrado.
Buber: três tipos de língua.
Exposta a diferença entre ‘vida espiritual’ e ‘vida no Espírito’ conforme Buber, e antes ainda de entrar no mérito de seu entendimento para a compreensão da obra de Mira, tenho de arriscar-me mais uma vez a tentar resumir outro tema de Buber que, para quem se vota ao diálogo e à comunicação, é essencial. Trata-se de distinguir as diversas línguas do homem e as formas de comunicação que elas viabilizam: a língua verbal, a língua da arte e a língua da ação.
A língua verbal é a língua do diálogo que expressa a relação Eu e Tu. Instrumental para a ‘vida no Espírito’, todavia ela não o alcança por inteiro. Pois o Espírito não se encontra no Eu que enuncia a linguagem, mas está entre o Eu e o Tu. O Espírito é como se fosse o ar que respiramos. Nas palavras de Buber: “O homem vive no Espírito na medida em que pode responder a seu Tu. Ele é capaz disso quando entra na relação com todo seu ser”. Em A filosofia do diálogo, Buber explica que essa relação deve ser direta, franca e espontânea, um modo de buscar e experimentar a comunicação como entrega ao diálogo que envolve os participantes de forma recíproca, sem o que a ‘vida no Espírito’ não se processa.
A língua da arte envolve outro tipo de experiência de entrega. Nas palavras de Buber: “É na contemplação de um face a face que a forma se revela ao artista. Ele a fixa numa imagem. A imagem não habita o mundo dos deuses, mas neste vasto mundo dos homens”. Para que ocorra tal face a face, a relação também deve ser direta, franca e espontânea. Ainda Buber: “Eis a eterna origem da arte: uma forma defronta-se com o homem e anseia tornar-se obra por meio dele”. Nesse confronto, o homem deve estar atento, de olhos abertos para o face a face imprevisto. Caso contrário, ele não o capta, a forma se perde, deixou de ser obra.
A língua da ação, porém, é um “domínio acima do espírito do conhecimento e do espírito da arte.(…) É ai que o Tu provindo de um profundo mistério aparece ao homem, lhe fala do seio das trevas e é ai que o homem lhe responde com sua vida”. É a relação pura dirigida ao Absoluto, como se estivéssemos desvinculados do mundo das relações Eu-Isso, suprema expressão do encontro Eu-Tu. Trata-se da ‘vida no Espírito’ em si mesma.
Minha visão da obra de Mira
Levando em conta a questão da Linguagem presente na obra de Mira Schendel, com a qual iniciei esta trajetória de lembranças a partir de Vilém Flusser, concluo que seu trabalho pode ser visto não somente como atendendo à língua da arte, tal como a define Buber, mas igualmente à língua verbal, e, sobretudo, à língua da ação, aquela dirigida a um Tu absoluto. Os traços de linguagem que aí se encontram, sendo parte da língua da arte, são mais que ela mesma: são a marca da palavra voltada ao absoluto. Por isso Mira se consumia em sua criação, exaurida ao fim de cada obra. Daí seu mistério e seu fascínio.
Provavelmente tudo isso está implícito no texto de 1967 de Flusser, quando via na obra de Mira a presença da linguagem como pré-texto, considerando-se seu conhecimento da mística judaica que entende a palavra com um dom divino anterior à própria experiência da vida humana. Nesse sentido, a linguagem não seria apenas pré-texto, mas até mesmo pretexto. Mas nada disso está explicito, nem as derivadas ficam claras. Por isso, nos termos de Flusser, eu preferiria falar em pós-texto, não pré-texto. Esses traços da linguagem na obra de Mira podem, sim, ser um texto, fruto do conhecimento adquirido em toda a vida milenar do ser humano, em sua vida espiritual, mas agregado do esforço sublime de tentar dirigir a palavra ao Absoluto. E como o faria a artista? Convocando todas as suas energias e, imersa na relação com algo que anseia por tornar-se imagem, lançar-se à prancha de desenho em toda a inteireza de sua espontaneidade e, depois – somente depois – ver os resultados dessa ação: traços, formas esparsas, letras, palavras em diversas línguas, com ou sem sentido. Talvez alguma ligeira variação em textura e cor. Não se trata de linguagem em estado pré-verbal, mas sim pós-verbal, pois a palavra constituída através da cultura, tem agora outro destino.
É essa minha visão. Mira pode ou não ter tido consciência de uma preocupação com esse tipo de relação em sua obra. E se a tivesse, também não diria, entendo eu, por uma questão de recato. Seria muita pretensão afirmar isso. Mas um terceiro, que teve a oportunidade de conviver com ela, apreciar sua obra, e saber de seu vínculo com Buber, talvez possa e deva fazê-lo. Eu mesmo, também por uma questão de recato, sinto-me constrangido em fazer tal afirmação, pois implicaria de algum modo ao menos sugerir que eu tenha algum conhecimento desse tipo de relação. Entretanto, só me sinto mais confortável em fazê-lo diante da série de 16 gravuras de Mira, intitulada Homenagem a Deus – pai do Ocidente, de que tive conhecimento e vi publicada somente em 2010. A série toda mostra sua preocupação com o sagrado, tal como pode ser entendido no mundo ocidental, a ponto de fazer-lhe uma homenagem.
Mira: Homenagem a Deus – pai do Ocidente
Trata-se de 16 desenhos, todos em folha de papel de formato mais alto que largo, na proporção de H:L = 2:1, numerados de 1 a 16, utilizando tinta em spray, nanquim e letratone (letraset). Formas em traços grossos, linhas curvas, circulares, em reta e ângulos, nas cores preto, vermelho, branco, em tons prateados e dourados. Com o letraset, Mira foi escrevendo palavras e/ ou pequenas frases:
exultem as filhas de Judá por causa dos tevs juizos
o espírito de deus pairava por sobre as águas
alegrar-se-á o justo, quando vir a vingança
banhará os pés no sangue do ímpio
NEM ME CASTIGUE NO TEU
o teu braço é armado de poder, forte é a tua mão …
the courage to accept acceptance
il dio vivo di abramo …
a justiça e a paz se beijaram
deus … … faz desabrochar a flor.
No 16º desenho, uma mancha em linha reta, tal como um condão divino, rompe uma forma circular em tom dourado, apontando para uma cápsula que engloba Vida em forma de flores. No seu entorno, o espaço branco e livre que a envolve, a palavra “der geist” (em alemão, o espírito), em letras pequenas. Este certamente é o desenho mais revelador em apoio às ideias anteriormente aventadas sobre a obra de Mira: o dedo indicando, na cápsula semicerrada, o mundo do Isso, onde a Vida está confinada (delimitada?), rodeada pelo espaço aberto que se infiltra mesmo em seu interior por uma brecha, o mundo do Tu, único território onde é possível ‘viver no Espírito’.
Sob esse ponto de vista, Mira poderia indicar que se sentia presa na cápsula, invocando todas as suas forças para, ao menos, dirigir a palavra Àquele a quem presta homenagem, um Tu absoluto. E que palavra? O que mais restaria, senão símbolos, letras esparsas, invertidas, garranchos… todos entrelaçados e dispersos no espaço?


Comentário de José Resende
A propósito de “Homenagem a Deus Pai do ocidente”, o artista plástico José Resende, grande amigo de Mira Schendel, escreveu-me:
“Mas, vamos ao seu texto, que além de um relato muito franco e bonito sobre sua amizade com a Mira me parece, sobretudo muito oportuno, por acreditar que as suas conclusões sobre o teólogo Martin Buber podem esclarecer o que eu penso ser uma grande confusão que está sendo feita sobre o problema da espiritualidade para a Mira.
Acredito que tudo tem origem no texto de Geraldo Souza Dias (“Mira Schendel do Espiritual à Corporeidade”), editado pela Cosac&Naify, e que se repete no catálogo do MOMA, principalmente no que diz respeito à série citada por você “Homenagem a Deus – pai do Ocidente“.
Discuti muito com a Mira sobre essa série pois não me conformava com o uso do spray, inclusive com cores exóticas como o rosa ‘choc’ e o azul turquesa que hoje ( a série está exposta na Pinacoteca) devido a má qualidade desses pigmentos desapareceram, ainda mais somadas ao vermelho, o ouro e o prata, davam ao conjunto um aspecto kitsch nada habitual nos procedimentos da Mira. Além do que, são trabalhos que se poderia dizer barrocos em relação à sua economia de meios e procedimentos. São de uma gestualidade violenta. Ou seja, apesar de aconteceram em papeis cujo formato são os o que ela adotava, de resto são trabalhos excepcionais e únicos quanto à matéria (spray), às cores e ao gesto.
Desculpe discordar da sua interpretação, mas nas discussões que tivemos o que a Mira dizia à respeito dessa série vai em sentido contrário do que está sendo afirmado a cerca desse trabalho. A atitude segundo ela nesses desenhos era de sarcasmo. Uma oposição exatamente à figura de Deus Pai, aliás extensivas à todas as religiões monoteístas, que segundo ela fundam no Ocidente a Phalocracia que levou o feminino a uma posição de inferioridade e submissão. Esta questão do feminino a preocupava naquele momento e aparece em outras séries, inclusive naquela que ela chamava de “Bordados ” (concomitante com os trabalho da Mucci que você comenta), relativa também segundo ela às próprias “Droguinhas”, um fazer de Penélope, repetitivo, obsessivo, semelhante ao tecer, próprio do feminino por que mais afeito à manualidade do que às ideias. Uma forma de ser que ela se preocupava em exercer e afirmar através do seu trabalho. É dela e textual em entrevista publicada a autocrítica em relação aos Sarrafos de que seriam excessivamente fálicos.
A visão que você constrói do teólogo Martin Buber, é muito oportuna, pois absolutamente coerente com a forma que o problema da espiritualidade poderia se apresentar para ela, inclusive por elidir completamente na exposição que você faz do sistema dele a questão da existência ou não de um Deus. A busca dela pelas religiões orientais (presente nas séries de Mandalas) a meu ver só confirma essa posição anti monoteísta. Ou seja, a meu ver ela estava em guerra contra esse Deus Pai Phalocrata quando se permitiu fazer essa série. Peço que você reveja os trabalhos admitindo mesmo que por mero exercício essa minha hipótese.”
José Resende certamente está certo nesses seus comentários, tanto é que a partir dos mesmos, cabem ainda outras reflexões.
Outras reflexões e lembranças
O catálogo, na prática um livro, de uma grande exposição da artista na galeria do SESI em 1996, No vazio do mundo – Mira Schendel, organizado pela curadora Sonia Salzstein, com textos de crítica e fragmentos da própria Mira, apresenta um interessante panorama da sua obra. Embora com focos distintos, esse conjunto de textos me parece confirmar de modo bastante apropriado o que foi aqui anteriormente exposto da minha visão sobre a obra de Mira. O “vazio do mundo” que deu título à exposição remete a espaços cósmicos e desconhecidos, no face a face que lembra a busca do entendimento do porquê de nossa existência. Que, para muitos, tem um nome: o divino…
De inicio, tive muita dificuldade em ler o livro Eu e Tu de Martin Buber. Anos de esforços e tentativas. Começava a ler pela apresentação e não conseguia ir em frente. Na década de 1980, falei disso a Isaias Kirschbaum, médico psiquiatra e psicanalista, e ele, com um leve sorriso, me disse: – Rodolfo, experimenta assim : ‘Eu e não-Eu’… Foi uma ideia boa. Mas desconsiderei tudo o que vinha antes do texto de Buber propriamente, e entrei direto na expressão do seu pensamento. Na realidade, é um texto simples, de palavras de uso comum. Mas cada frase tem de ser lida e vivenciada como experiência. Temos de ver se seu conteúdo se encaixa ou não em algum entendimento que já se tenha sobre o tema. Se encaixa, podemos ler a frase seguinte. Se não se encaixa, adotei o sistema de interromper a leitura e refletir mais sobre o conteúdo da frase. Assim consegui ler o livro nos anos 1990, após o falecimento de Mira. Agora, em 2014, estou enfrentando uma releitura. A passos lentos, sem nenhuma pressa em chegar ao fim. E concentrado em não deixar nada passar.
Em associação ao “não Eu” de Isaias, também neste ano de 2014 tomei conhecimento do trabalho de Claudio Miklos, A arte ZEN e o caminho do vazio – uma investigação sobre o conceito budista de Não Eu na criação da arte, apresentado, em 2010, como Dissertação de Mestrado à Universidade Federal Fluminense em Niterói, Rio de Janeiro, e que pode ser conferido baixando-se o texto pela internet. Esclareço que Zen também é algo que me envolve de perto: comecei a praticar o zazen em 1962, no Templo Zen da Rua São Joaquim em São Paulo, ainda na antiga casa. Também possuo, datado por mim em 1962, o livro de Toshimitsu Hasum, Zen in Japanese art – A way of Spiritual Experience, que pode ser igualmente baixado pela internet. Em base a isso, tomo a liberdade de afirmar que o trabalho de Claudio Miklos concorda perfeitamente com tudo o que aprendi, sei, penso e me emociona no tocante à arte zen, à meditação zen e ao próprio ZEN, cuja prática me ajudou muito na vida.
Claudio Miklos está mais ligado ao zen da Coréia, mas isso não muda nada em relação ao ensinamento básico do budismo Zen. Assim, qual não foi minha surpresa ao encontrar no seu texto um subtítulo, “Um insight zen nas artes contemporâneas” (p.88), e logo a seguir uma referencia ao trabalho de Mira (p. 111 e 112). Diz o autor que Mira “possui em sua linguagem artística semelhanças importantes com as qualidades de despojamento e simplicidade. Em diversas obras de sua autoria podemos perceber uma relação adequada entre vazio e sutileza, tão praticada nas artes zen”, incluindo, para ilustrá-lo, dois trabalhos de Mira, nº 24 e 25. Também concordo com essa afirmação, tanto na sua pertinência em relação ao ZEN, quanto naquilo em que corrobora minha visão do trabalho de Mira comparativamente ao pensamento de Martin Buber.
Vejo nesses trabalhos recentes mais uma confirmação de que a obra de Mira seria realmente direcionada ao divino. Observe-se que teve o cuidado de intitular sua obra Homenagem a Deus – pai do Ocidente, precisando do que se tratava, uma vez que tinha conhecimento de que a visão do Oriente, em especial aquela do zen, é diferente da nossa. Nos textos reunidos por Sonia Salzstein para a exposição do SESI, encontra-se uma informação interessante (p. 95): consta que, em 1978, Mira fazia meditação numa comunidade zen em São Paulo, que somente poderia ser a da Rua São Joaquim. Não posso afirmar que cheguei a fazer meditação zen em algum grupo de que Mira participasse. Entretanto, e em resumo, decorridos mais de 30 anos, tomo conhecimento de que palavras chave que para mim definem Mira e sua obra estão sendo compreendidas e aceitas, inseridas também no contexto do mundo oriental: no “vazio do mundo”, o “não Eu”. O que mostra, no fundo, uma busca universal do ser humano, qualquer que seja a forma em que se expresse, no Ocidente como no Oriente.
Dirigir o trabalho ao divino recorda mais uma vez Buber e uma pequena fábula por ele narrada, segundo a qual um poeta e músico chinês queria dirigir sua obra ao povo, sem, contudo, conseguir acessá-lo. Então resolveu fazer sua obra voltar-se para o divino e nesse momento o povo começou a ouvi-lo… Será que alguma vez ocorreu ou ocorrerá o mesmo com a mensagem que a obra de Mira parece nos ter deixado em legado?
O final
Depois que Mira voltou de viagem e começou a tratar de sua doença, telefonei-lhe para marcar uma visita. Atendeu-me ao telefone, dizendo que não queria me ver. O tempo passou e tive de dedicar-me a meu pai, que também estava com a mesma doença. Faleceram, primeiro Mira e depois meu pai, com uma diferença de cerca de 30 dias. Assim, depois daquele último e breve contato, não insisti mais em vê-la pessoalmente. Informaram-me que faleceu lúcida e plenamente consciente.
Rodolfo Geiser, 5 de junho de 2014.
Esse texto foi revisto pela Professora Maria Lucia Montes (antropologia/USP) e que fez complementações onde se requeria maior conteúdo filosófico.
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(1.) E é assim que aflora a própria alma de cada um dos homens.
(2.) O véu age com muito glamour e atua distorcendo a realidade…